12 de outubro de 1985.
Carcaça de um cão morto no beco hoje de manhã com marcas de pneu
no ventre rasgado. A cidade tem medo de mim. Eu vi sua verdadeira face. As ruas
são sarjetas dilatadas cheias de sangue e, quando os bueiros transbordarem,
todos os vermes vão se afogar. A imundice de todo sexo e matanças vai espumar
até a cintura e as putas e os políticos vão olhar para cima gritando
"salve-nos"... e eu vou olhar para baixo e dizer "não".
Eles tiveram escolha, todos. Podiam ter seguido os passos de homens honrados
como meu pai ou o presidente Truman. Homens decentes, que acreditavam no suor
do trabalho honesto. Mas seguiram os excrementos de devassos e comunistas sem
perceber que a trilha levava a um precipício até ser tarde demais. E não me
digam que não tiveram escolha. Agora o mundo todo está na beira do abismo
contemplando o inferno e os liberais, intelectuais e sedutores de fala macia...
de repente não sabem mais o que dizer.
13 de
outubro de 1985
Dormi o dia todo. Acordei às 16:37, com a senhoria reclamando do
cheiro. Ela tem cinco filhos de cinco pais diferentes. Deve enganar a
previdência social. Logo vai anoitecer. Lá embaixo a cidade grita como um
matadouro cheio de crianças retardadas. Nova York. Sexta à noite um comediante
morreu em Nova York. Alguém sabe por quê. Lá embaixo... alguém sabe. O
crepúsculo fede a fornicação e más consciências. Acho que vou me exercitar.
Primeira visita da noite
infrutífera. Ninguém sabia de nada. Sinto-me deprimido. A cidade está morrendo
de hidrofobia. Será que só consigo limpar a baba da sua boca? Jamais se
desesperar. Jamais se render. Deixo as baratas humanas discutindo heroína e
pornografia infantil. Tenho assuntos a tratar com outra classe de pessoas.
20:30. Encontrar Veidt me deixou um gosto ruim na
boca. Ele é mimado e decadente. Traiu até mesmo suas próprias hipocrisias
liberais. Talvez homossexual? Devo me lembrar de investigar mais. Dreiberg não
fica atrás. Um fracassado lamuriando-se no porão. Por que restam tão poucos de
nós na ativa e sem desvios de personalidade? O primeiro Coruja é dono de uma
oficina. A primeira Espectral é uma puta velha e inchada morrendo num asilo na
Califórnia. Capitão Metrópolis foi decapitado num acidente de carro em 1974. O
Mariposa está num hospício no Maine. Silhouette aposentou-se em desgraça. Foi
morta seis semanas depois por alguém querendo vingança. Dollar Bill foi
baleado. Justiceiro Encapuzado sumiu em 55. O Comediante está morto. Só restam
dois nomes na minha lista. Ambos moram no Centro Rockefeller de Pesquisas
Militares. Eu vou até eles. Vou avisar o homem indestrutível que alguém planeja
matá-lo.
23:30. Sexta à noite um comediante morreu em Nova
York. Jogado pela janela. Quando atingiu a calçada, a cabeça dele entrou no
estômago. Ninguém liga. Ninguém além de mim. Será que eles estão certos? Logo
vai haver guerra. Milhões vão queimar. Milhões vão perecer de doença e miséria.
Por que se importar com uma morte? Porque existe o bem e o mal, e o mal tem de
ser punido. Mesmo à beira do fim, isso não vai mudar. Mas muitos merecem
punição... e há tão pouco tempo.
16 de
outubro de 1985.
Rua 42: seios nus se esparramam de todos os outdoors, de todos os
cartazes, sujando a calçada. Me ofereceram amor sueco e amor francês...
mas não amor americano. Amor americano; como Coca em garrafas de vidro
verde...eles não fazem mais. Pensei na história do Moloch a caminho do
cemitério. Pode ser mentira. Parte de uma vingança planejada durante uma década
atrás das grades. Mas, se for verdade, o que significa? Referência intrigante a
uma ilha. Também ao Dr. Manhattan. Será que ele corre perigo? Tantas perguntas.
Tudo bem. Respostas em breve. Nada é insolúvel. Existe esperança. Enquanto
houver vida. No cemitério, cruzes brancas se enfileram, marcas de giz numa
lousa gigante. Faço última visita em silêncio, sem alarde. Edward Morgan Blake.
Nascido em 1924. Comediante por 45 anos. Falecido em 1985, enterrado na chuva.
É o que acontece conosco? Uma vida de conflitos sem tempo para amigos... e no fim
só nossos inimigos deixam rosas. Vidas violentas terminando violentamente.
Dollar Bill, Silhouette, Capitão Metrópolis... nós nunca morremos na cama. Não
é permitido. Algo da nossa personalidade, talvez? Algum impulso animal para
lutar e se debater, fazendo de nós o que somos? Não é importante. Fazemos o que
deve ser feito. Outros enterram a cabeça entre as tetas inchadas da indulgência
e da gratificação, leitões procurando abrigo debaixo de uma porca... e o futuro
se avista como um trem expresso. Blake entendia. Tratava tudo como piada, mas
entendia. Ele viu as rachas na sociedade. Viu os homenzinhos de máscara
tentando remendar tudo... Ele viu a verdadeira face do século 20 e escolheu se
tornar um reflexo, uma paródia desses tempos. Ninguém mais viu a piada. Por
isso a sua solidão. Ouvi uma piada uma vez: Homem vai ao médico. Diz que está
deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo
ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. Médico diz: "Tratamento
é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade. Assista ao espetáculo.
Isso deve animá-lo." Homem se desfaz em lágrimas. E diz: "Mas,
doutor... eu sou o Pagliacci." Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os
tambores. Desce o pano.
21 de
outubro de 1985.
Saí da casa de Jacobi às 2:35. Ele não sabe nada sobre a tentativa
de desacreditar Dr. Manhattan. Foi apenas usado. Por quem? Russos parecem a
escolha óbvia: Manhattan e Comediante eram figuras militares importantes. Mas
Comediante falou de uma ilha, artistas e escritores vivendo nela. Não se
encaixa. Não consigo me concentrar. Cansado demais. Sem dormir desde sábado.
Andei pra casa passando por latas de lixo cheias de rumores de guerra,
analisando fatos; corpos; motivos... aguardando um lampejo de clareza no mar de
sangue.
Acordei às onze com gritos lá
fora. Perturbado por ter adormecido sem remover a pele da cabeça. Mais cansado
do que imaginava. Devo ter mais cuidado. Do outro lado da rua, garotos com
spray desfiguravam prédio abandonado. Memorizei feições e me preparei para o
trabalho. Primeiro tirei meu rosto, dobrei e guardei no casaco. Sem face,
ninguém me conhece. Ninguém sabe quem sou. Ao sair do quarto, encontrei a
senhoria. Queixas de sempre: higiene e aluguel. Havia marcas de chupada no
pescoço gordo. Recentes. Ela me lembra minha mãe. Na rua, inspecionei o prédio
desfigurado: silhueta na porta, homem e mulher, possivelmente em preliminares
sexuais. Não gostei. Faz porta parecer assombrada. Na 40a com a 7a, vi Dreiberg
e Juspeczyk saindo do Gunga Diner. Um caso, talvez? Será que Juspeczyk
arquitetou exílio de Manhattan a fim de abrir caminho para Dreiberg? Ela também
odiava o Comediante. Devo investigar. Entrando no Diner, pedi café e me sentei
olhando minha caixa de correio do outro lado da rua. Transeuntes fizeram vários
depósitos: papel de bala, jornais, um par de tênis estrangulado pelos próprios
cadarços, línguas pendendo horrivelmente. Esta cidade é um animal feroz e
complicado. Para entendê-la eu leio seus dejetos, seus aromas, o movimento de
seus parasitas... Sentei olhando o lixo e Nova York abriu seu coração.
Alguém tentou matar Veidt. Prova
a teoria do "matador de mascarados". O assassino fecha o cerco.
Verifiquei mensagens. Bilhete de Moloch. Relacionado talvez? Depois fui
recolher rosto no beco. Em frente ao Utopia, polícia prendeu um viciado em
KT-285. Estava gritando alguma coisa sobre o presidente Nixon. Sobre bombas.
Será que todos enlouqueceram menos eu? Sobre a 40a, um elefante flutuava. Acima
dele, satélites espiões invisíveis. Se eles estreitarem seus olhos de vidro,
todos vamos morrer. Mundo implacável. Só há uma resposta sadia para ele. O beco
estava frio e deserto. Minhas coisas estavam onde eu havia deixado. Esperando
por mim. Colocando-as, abandonei o disfarce e voltei a ser eu mesmo, livre do medo,
da fraqueza ou do desejo. Meu casaco, meus sapatos, minhas luvas imaculadas.
Meu rosto. Tenho três horas antes de encontrar Moloch. Mais adiante, ouvi grito
de mulher, primeira nota balbuciante do coro noturno da cidade. Me aproximei.
Uma tentativa de estupro/assalto/ambos. Pigarreei. O homem se virou e havia
algo gratificante no seu olhar. Às vezes à noite é generosa comigo.
1 de
novembro de 1985.
Último registro? Saímos do escritório de Veidt quase meia-noite.
Dreiberg, convencido de que Veidt está por trás de tudo, fala sério em visitar
a Antártica. A nave dele aparentemente tem condições, mas e nós? Veidt. Não
imagino oponente mais perigoso. Se a jornada for possível, rastreá-lo ao seu
covil é a única opção. Mas me sinto intranqüilo. Território desconhecido... Ele
poderia nos matar na neve. Ninguém jamais saberia... Primeira noite de
novembro. Estou com frio. Escritórios abaixo, lajes marcando diariamente
milhares de túmulos. Dentro, nos mostradores dos relógios, tão visados quanto
celebridades, os ponteiros iniciam as voltas finais. O fim vem a galope,
favorecendo a espora, poupando as rédeas. Acho que vamos tombar logo. Veidt é
mais rápido do que Dreiberg. Talvez mais do que eu. Voltar da missão parece
improvável. Última anotação. Vou mandar o diário aos únicos em quem confio.
Digo a Dreiberg que preciso checar minha caixa postal. Ele acredita. Quer eu
esteja vivo ou morto, se você estiver lendo isso agora vai saber da verdade:
seja qual for a natureza desta conspiração, Adrian Veidt é o responsável.
Esforcei-me para ser compreensível. Acredito que tracei um quadro aterrador.
Apreciso seu apoio recente e espero que o mundo sobreviva até isto chegar às
suas mãos, mas tanques estão em Berlim oriental e o fim está próximo. Quanto a
mim, de nada me arrependo. Vivi a vida sem concessões... e agora avanço rumo às
sombras sem me queixar. RORSCHACH, 1 de novembro de 1985.
(Watchmen)